15jul
Garoto Cidadão de Araucária exibe filme Upa, Neguinho

A ação aconteceu durante o período de celebração dos 33 anos do ECA e contou com bate-papo temático com ex-educador do projeto e protagonista do filme 

Nesse mês de julho, educandos e educandas do Garoto Cidadão de Araucária, cidade localizada no estado do Paraná, tiveram a oportunidade de assistir à exibição do longa-metragem Upa, Neguinho (2022). Dirigido por Douglas Carvalho dos Santos, o filme é protagonizado por Kunta Leonardo da Cruz, dançarino, ator e docente que foi educador no Garoto Cidadão por seis anos. A mostra aconteceu como parte da agenda de atividades do projeto em comemoração aos 33 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).  

O filme de Douglas Carvalho dos Santos narra a trajetória do bailarino Kunta Leonardo desde seu nascimento, na comunidade quilombola Paiol de Telha –primeiro território quilombola titulado no estado do Paraná – até sua viagem a Curitiba, cidade onde mora atualmente, para se dedicar à dança. Com uma abordagem documental, o diretor mescla o cotidiano na comunidade com performances de dança, criadas por Leonardo e outros três artistas negros (Laremi Paixão, Samuka e Priscilla Pontes), conduzindo o telespectador por diferentes paisagens e gestos.  

Ao relembrar o processo de produção do filme, Kunta Leonardo conta que a gravação aconteceu enquanto ainda fazia parte da equipe do Garoto Cidadão: “até o momento em que o Upa, Neguinho foi lançado, eu ainda estava no projeto da Fundação CSN, por isso dá para dizer que as crianças acompanharam toda a trajetória de produção do filme, muito por conta da nossa vivência no dia a dia nas aulas, que se deu em paralelo à construção do projeto”. De acordo com o ator e dançarino, Upa, Neguinho tem a característica de falar da trajetória dele enquanto artista, do trabalho, do solo cênico e da experiência dele com dança.    

Durante a exibição do longa, educandos e educandas se emocionaram com a história narrada em cena: Micael, um dos educandos que assistiu ao filme, levou até Kunta Leonardo a felicidade de enxergar no educador um espelho. “Ele chegou falando que se reconhece não só com o que viu na tela, mas também pela nossa história real porque eu acompanhei e vivenciei sua realidade enquanto educador no projeto”, comenta.  

Dentro do Garoto Cidadão, o arte-educador pedia aos jovens para que mencionassem uma pessoa em que gostariam de ser no futuro, alguém em quem se inspiravam, um exemplo de pessoa a ser seguido, “e ter jovens de 13 anos respondendo que essa pessoa era ‘o professor Leo’ é doido, porque eles têm o mundo todo como referência e, mesmo assim, lembram de mim”. Nesse contexto, Kunta Leonardo ressalta a importância de ter esse reconhecimento de outras crianças e adolescentes negros a partir do próprio filme, “porque são muitos os Upa, Neguinhos espalhados pelo Brasil”. 

No Paraná, por exemplo, o Garoto Cidadão recebe educandos e educandas de várias partes da região do município de Araucária, com vulnerabilidades sociais e necessidades distintas. O dançarino explica que, durante o período em que foi educador no projeto, “era um desafio produzir, dança, arte sabendo que essas crianças e adolescentes enfrentam maiores dificuldades no dia a dia”. Por isso, durante as aulas de dança dentro do projeto, Kunta Leonardo se baseava nas existências dos próprios meninos e meninas para explicar que o que estava acontecendo ali – uma aula de dança – era “um direito deles; que o Garoto Cidadão é um direito; esse recurso que recebemos e os materiais utilizados são um direito deles”. Para ele, é fundamental mostrar aos jovens como relacionar a própria existência com a educação, com a política e todas as questões sociais que envolvem o dia a dia de cada um, “incluindo a nossa produção artística”. 

Ainda dentro das aulas de dança no Garoto Cidadão, as pautas variavam: a questão de gênero, por exemplo, também era tema dos encontros, uma vez que a presença masculina dentro da dança vinha acompanhada de resistência por parte dos meninos e discussões sobre machismo e homofobia: “era uma coisa difícil, mas gradualmente os meninos foram se entregando e agora até recebo mensagem de ex-educandos perguntando de grupos de dança pra participar aqui em Curitiba”, conta. Quando voltou ao Garoto Cidadão para a exibição de Upa, Neguinho, Kunta Leonardo também descobriu que uma educanda está prestando vestibular para se graduar em dança e não segurou a felicidade: “é super gratificante!” 

“A minha relação com os jovens sempre foi muito real, muito papo-reto”, Kunta Leonardo destaca. Durante as aulas, ele fazia questão de explicar para os educandos e as educandas que o que estavam fazendo dentro do projeto era arte, que a dança se relaciona com todas as áreas de conhecimento e que é parte de um processo de educação. O arte-educador afirma que sempre fica emocionado ao falar do Garoto Cidadão, porque “é um espaço que oferece abertura para as pessoas expressarem suas individualidades através da arte. Diante da situação que eles vivem, ter um motivo para dançar não é uma tarefa fácil. Não tem como ser superficial com crianças que estão vivendo realidades complexas com as quais eles vivem”.  

A emoção em fazer a roda de conversa com educandos e educandas, no momento da exibição do filme, tomou conta, “porque o projeto tem o histórico de discutir pautas importantes”. Para além de trazer o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para ele, “é fundamental que as coisas sejam pautadas em direitos: tudo isso é um direito deles, educação é um direito; moradia é um direito deles; trabalho com dignidade é um direito. E a nossa sociedade precisa garantir isso”, ressalta.  

Ele conta que, durante o período de graduação, desenvolveu um projeto de Iniciação Científica que tratava da dramaturgia para o corpo de mulheres negras “porque dei aula no Teatro Guaíra, na escola de dança, com mais de 300 alunas, das quais 6 eram negras. Comecei a questionar como um espaço de formação oficial do Estado não tem presença de mulheres negras”, explica. O projeto de pesquisa mescla danças negras e técnicas de educação somática e levou Leonardo para apresentá-lo na Universidade de Pomona, na Califórnia (EUA). 

Enquanto desenvolvia a pesquisa, ele foi convidado para dar aula na Universidade de São Paulo (USP) e, depois, algumas residências artísticas em Curitiba – onde vive atualmente. Era também com base nesse projeto que ele desenvolvia os trabalhos criativos com os educandos e educandas do Garoto Cidadão, “que também foi uma grande escola para a minha pesquisa”.  

Seguindo o caminho entre a arte e a docência, Kunta Leonardo diz que, agora, se mantém com o pé muito firme na educação, porque acredita que é a partir de recursos públicos e de qualidade que se constrói uma educação de qualidade. Hoje, concomitantemente à dança e ao trabalho de formação de professores, o ator fechou um processo com a Companhia de teatro da Universidade Federal do Paraná (UFPR). O dançarino reforça que esse papel que ele vem desempenhando com meninos e meninas do Garoto Cidadão deve ser compartilhado com outras pessoas, porque “existem muitos outros jovens negros fazendo e produzindo arte”.